Quetzalcóatl e suas manifestações na Mesoamérica

Texto de Alexandre Guida Navarro

Resumo

Este artigo versa sobre uma das principais divindades cultuadas na Mesoamérica: Quetzalcóatl, a “serpente emplumada”. Para realizar esta tarefa, utilizamos dados de origem etnohistórica: as fontes escritas durante o período de Conquista do México. O objetivo é apresentar ao leitor um panorama geral de como as diversas culturas da Mesoamérica cultuaram este deus e os diversos desdobramentos que recebeu desde as primeiras sociedades pré-hispânicas até o período colonial mexicano.



Palavras-chave: divindade, documentos escritos, conquista do México.

1. Etimologia da palavra

Na Mesoamérica, a combinação de um deus e um herói civilizador produziu um universo de representações e imagens iconográficas complexas (Campbell, 1959). Quetzalcóatl faz parte deste universo. Sua figura mítica representa um alto grau de complexidade cultural: tem a qualidade de renascer em todas as épocas, mostrando-se em cada uma delas com uma imagem iconográfica distinta ou modificada e recoberta de novos significados, sintetizados em uma profusão de imagens que caracterizam sua presença em toda a Mesoamérica.
A origem da figura de Quetzalcóatl é ainda muito confusa. Seu nome provém da combinação da palavra nahua quetzalli, que significa “pluma verde preciosa”, alusão à ave de plumas brilhantes, quetzal; e de cóatl, serpente (Florescano, 1995). O pássaro e a serpente são as representações simbólicas de dois espaços significativos do pensamento cosmológico e religioso mesoamericano: o céu e a terra.
De acordo com esta premissa, a divindade dual é uma síntese de forças opostas: representa os poderes destruidores e germinadores da terra, evidenciados pela serpente; com as forças fecundadoras e ordenadoras do céu, retratadas pelo pássaro. É visível entre as culturas mais antigas da Mesoamérica, como a dos olmecas e maias, uma cuidadosa preocupação em se fundir, a partir de uma figura simbólica, as forças criadoras do céu e da terra, inferindo à destreza em se produzir a renovação anual da vegetação ou a alternância do dia com a noite: o pôr-do-sol em sua faceta de monstro terreno e de seu idôneo ressurgimento no oriente. A imagem que retrata as águas do céu regando terra e produzindo a germinação das plantas é a mais antiga expressão do poder criativo de ambas as forças (Florescano, 1995).

2. As manifestações de Quetzalcóatl

A serpente emplumada

A caracterização da iconografia mesoamericana, em especial a maia, é marcada por traços e motivos representados pela serpente. Grande parte dos estudos que desta natureza mostra que a serpente dá origem aos símbolos mais importantes dentro da imagética pré-hispânica.

O motivo ofidiano está relacionado a uma crença de natureza divina da serpente e sua representação indica a elaboração de um culto ao que ela representa. Parece ser que a representação da serpente e sua relação com as mais diversas variáveis culturais estiveram presentes em diversos contextos mesoamericanos e com os mais diversos significados. Segundo De La Garza (1984),
acerca das características biológicas da serpente, causam admiração e medo ao ser humano; espantam pela sua rapidez e agilidade, apesar de não possuírem patas; surpreendem também pela sua língua bifurcada, por sua visão fixa, ausente de pálpebras e fundamentalmente por sua vitalidade que se manifesta nos seguintes aspectos: renovação periódica de sua pele, permanece sem comer ou tomar água durante muito tempo, cresce durante toda sua vida, mostra uma notável resistência ao morrer quando está gravemente ferida, tem um modo muito peculiar de acasalamento, além de se assemelhar ao falo, princípio
da vida por excelência.

Este mesmo princípio de vitalidade pode ser evidenciado pela descrição do ornitólogo Alexander Skutch, em relação à ave quetzal: “La cabeza completa y la parte superior de su plumaje, la garganta y el pecho, son de un intensoverde brillante. La parte inferior del pecho,
el vientre y las cobertoras inferiores de la cola son el más vivo carmesí... Las plumas oscuras centrales de la cola están totalmente ocultas por las cobertoras superiores, mucho muy extendidas, que son de un verde dorado con iridiscencias azules o violetas, y tienen barbas suaves y sueltas. Tanto la pluma cobertora mediana, como la más extensa, son más largas que el cuerpo entero del ave, y se extiende más allá de la punta de la cola, que tiene una medida normal. Sueltas y delicadas, se entrecruzan sobre la punta de la cola y desde ahí, separándose poco apoco, forman una larga y graciosa cola curva que cuelga bajo el ave cuando se posa en alguna rama, y que ondea vistosamente detrás cuando está en vuelo.
La plumas exteriores de la cola son absolutamente blancas y contrastan con el carmesí del vientre... Para completar el esplendor de su atavío, reflejos azules y violetas se revuelven en el plumaje de brillo metálico del dorso y la cabeza, cuando es posible observarlo bajo una luz favorable”
.(Skutch, Alexander. Clandinnen, Inga. Aztecs. An Interpretation, p. 228. Cambridge: Cambridge University Press, 1991).
A primeira estrutura ornamentada em todos os seus lados com a figura da Serpente Emplumada foi uma pirâmide construída em Teotihuacán em meados do século II d.C. localizada no centro do recinto dedicado ao governo político da cidade (Marquina, 1981) (Figura 1. A serpente emplumada em Teotihuacan. Em Florescano, 1995: 7).
As inúmeras pinturas em murais expressam que a serpente, com seu corpo coberto de plumas, indicam a presença de rituais que implicam em sacrifício e regeneração da natureza (Berrin, 1988). A Serpente Emplumada é uma das expressões simbólicas mais constantes no aparecimento deste grande centro urbano, associada à fertilidade e ao princípio do ordenamento do tempo. Sua presença no sítio infere poder político e religioso, uma vez que o Templo da Serpente Emplumada foi construído no centro da Ciudadela, onde se localizava a sede do poder político.
Um estudo recente remete o significado da Serpente Emplumada: a peculiar cabeça que está representada no Templo da Serpente Emplumada é um dos símbolos mais importantes do poder secular em Teotihuacán (Taube, 1992). Seus estudos indicam que esta divindade é uma serpente solar ou do fogo e seus atributos estão relacionados ao símbolo da guerra. Seus estudos indicam que houve dualidade no governo teotihuacano a partir de Quetzalcóatl, vendo uma alternância na representação da divindade: a Serpente Emplumada estaria relacionada com a fertilidade e com os assuntos internos do Estado, enquanto que a Serpente da Guerra estaria vinculada à conquista militar.
Parece ser que o culto à guerra já esteja presente em Teotihuacán e associado à morte e à regeneração da natureza, uma vez que o derramamento de sangue, que era o alimento supremo dos deuses, assegurava a continuidade do ciclo cósmico e a renovação da fertilidade (Paztory, 1978; Navarro, 2007).

2.2. Vênus

Outro desdobramento de Quetzalcóatl amplamente registrado nas culturas mesoamericanas é Vênus. Sua representação está relacionada aos cultos de guerra e ao jogo de pelota, além do ciclo de morte e ressurreição, em que a Grande Estrela desempenhou um papel central.
Durante o Pré-Clássico, a Estrela Matutina e a Estrela Vespertina aparecem associadas ao ciclo solar na cultura maia. Desde este período até ao Clássico, os maias estabeleceram com exatidão o ciclo sinódico de Vênus em 584 dias e observaram que este ciclo dividia-se em períodos em que a estrela desaparecia e em outros em que ela aparecia visivelmente como estrela matutina ou vespertina.
A eficácia da observação da abóbada celestial é verificável no estabelecimento que os maias deram a uma destas fases, equivalente ao calendário sagrado de 260 dias que por sua vez correspondia ao ciclo da colheita do milho. A partir de seus conhecimentos astronômicos, descobriram que cinco revoluções sinódicas de Vênus coincidiam exatamente com oito revoluções anuais da Terra ao redor do Sol.
Descobriram também que o período de invisibilidade de Vênus no céu, antes de reaparecer como Estrela Matutina, era equivalente ao período de oito dias, que ia do nascimento das sementes de milho recém plantadas no solo até o surgimento dos brotos e de suas primeiras folhas, convertidas em “pluma verde preciosa” (Sprajc, 1982).
Deste modo, as observações dos movimentos de Vênus no céu, sua admirável transformação em dois corpos aparentemente distintos e visíveis em diferentes épocas do ano e sua vinculação com a germinação do milho posicionaram Vênus no centro das concepções maias de sacrifício, passagem da vida para a morte e regeneração.
Em seu aspecto de estrela Matutina, Vênus apresenta um simbolismo bélico em Teotihuacán e na área maia. Em Teotihuacán existem representações da Grande Estrela associadas a guerreiros e cenas de sacrifício desde o Clássico Inicial. No ano de 378 d.C. Tikal empreende uma guerra contra Uaxactún, inaugurando um novo tipo de estratégia, armamento e culto bélico na área maia.
Segundo Schele e Freidel (1990) esta guerra não foi empreendida em função da captura de cativos para a realização de cultos de sacrifício ritual, como era de costume, mas sim servia para conquistar outras cidades. Parece ser que Vênus adquire como característica uma alusão guerreira e sacrificial muito forte (Lousburry, 1982; Schele e Miller, 1986; Baird, 1989). As variadas imagens de Vênus representadas nos monumentos da época Clássica Final recriam cenas de um mito de sacrifício e regeneração, em que o planeta é o agente principal: propicia combates, sofre a decapitação, torna-se invisível durante um tempo e ressurge transfigurado em deus.
Assim, na prática do culto guerreiro e no jogo de pelota, o sacrifício aparece como a condição necessária para a existência do universo e o ressurgimento da vida, representação esta muito evidente nos edifícios e construções de grande parte dos sítios arqueológicos mesoamericanos (Florescanao, 1995).



2.3 Ehécatl ou 9 Vento


A divindade 9 Vento, aparentemente, é um dos deuses criadores das religiões do período Pós-Clássico (Figura 2. Ehécatl. Em Florescano, 1995: 34). Contudo, seu registro mais antigo provém da região maia. Chan Bahlum, o rei de Palenque em 690 d.C. registrou no que hoje conhecemos como textos do Conjunto da Cruz,
a origem dos cosmos e dos deuses. Segundo estes textos, o Primeiro Pai e a Primeira Mãe, após criarem o céu e dar início ao tempo em
13 de agosto do ano de 3114 a.C. (4 Ahau 8 Cumku), geraram três deuses, que é a famosa Tríade dos protetores de Palenque. O Deus I nasceu no dia 9 Ik, ou Nove Vento, e está associado à Vênus e ao sacrifício por decapitação.

Alfonso Caso (1977) foi o primeiro estudioso a oferecer as características de 9 Vento a partir dos estudos dos códices mixtecos, em que a presença desta divindade revela um culto fora do Altiplano Central. Segundo este pesquisador, o nascimento de 9 Vento está associado à ordenação cósmica e temporal, além do começo de uma nova era. Considera que os traços típicos de 9 Vento são a guerra, o canto, a escrita, o sacrifício e as cerimônias religiosas.
Deste modo Ehécatl ou 9 Vento assumem as características de um herói cultural de natureza divina, sendo um dos deuses criadores, uma vez que aparece quando o mundo estava mergulhado na escuridão, ajudando a separar o céu das águas da superfície terrestre e converte-se, a seguir, no próprio sustento do céu. Tudo indica que 9 Vento está associado ao culto de Ehécatl e parece que este culto originou-se no Clássico Final entre os huastecos e outros grupos da costa do Golfo, tendo um de seus maiores centros religiosos em Cholula, por ser um centro de adoração do deus do vento, um dos desdobramentos de Quetzalcóatl (Nicholson, 1978).

2.4 O multifacético personagem Ce Ácatl Topiltzin Quetzalcóatl como herói cultural


A partir das fontes escritas que consultamos até o final do período Clássico as divindades Serpente Emplumada, Vênus e Ehécatl apresentavam origens distintas, de diversos atributos sobrenaturais e características simbólicas e iconográficas diferentes. No entanto, cada uma destas divindades em todos os locais em que se manifestam, possuem uma ligação intrínseca entre si. No início do período Pós-Clássico (900-1100 d.C.), estas três divindades começam a mesclar-se dando origem ao multifacético personagem Ce Ácatl Topiltzin Quetzálcóatl.
O período que compreende o final do Clássico e o início do Pós-Clássico é uma época caracterizada pelo declínio das antigas organizações políticas criadas pelos maias, zapotecas e teotihuacanos e o surgimento de novos centros de poder hegemônico como Chichén Itzá, Cholula, Xochicalco, El Tajín e Tula, além do aparecimento de novos cultos.
Na tradição náhuatl, Quetzalcóatl está relacionado com a criação do Quinto Sol e o aparecimento da nova humanidade. Na tradição mixteca também está relacionado com um deus, Ehécatl-Quetzalcóatl, que reuniu em sua manifestação as qualidades civilizatórias, deus e supremo sacerdote de Tollán, que muitos acreditam ser a Tula arqueológica, o “lugar maravilhoso” onde Quetzalcóatl difundiu sua doutrina e proclamou seus bens, como podemos perceber neste relato: “Quetzalcóatl fue estimado y tenido por dios y lo adoraban de tiempo antiguo en Tulla, y tenían un templo muy alto con muchas gradas, y muy angostas que no cabía un pie; y estaba siempre echada su estatua y cubierta de mantas, y la cara que tenía era muy fea, la cabeza larga y barbudo; y los vasalos que tenían eran todos oficiales de artes mecánicas y diestros para labrar las piedras verdes, que se llaman chalchihuites, y también para fundir plata e hacer otras cosas, y estas artes todas hubieron origen del dicho Quetzalcóatl” (Sahagún, Bernardino de. Historia de las Cosas de Nueva España, pp. 278-279, 1956).
Estes relatos descrevem Quetzalcóatl como uma divindade própria dos toltecas, que aparece nas fontes escritas como o povo gerador da civilização e da excelência cultural. Junto com o deus Quetzalcóatl, os textos destacam a presença do sacerdote Quetzalcóatl que é visto como exemplo das virtudes sacerdotais em que se nota uma forte influência cristã. Estes textos enumeram as qualidades de um “povo iluminado” pela doutrina desta divindade que compreende a invenção da arte de trabalhar a pluma, os primeiros inventores da medicina, detiveram todos os ofícios de metalurgia, pintura, carpintaria, cerâmica, tecelagem e: “Adoraban a un solo señor que tenían por dios, el cual le llamaban Quetzalcóatl, cuyo sacerdote tenía el mismo nombre que también le llamaban Quetzalcóatl, el cual era muy devoto y aficionado a las cosas de su señor y dios, y por esto tenido en mucho entre ellos y así lo que les mandaba lo hacían y cumplían [...]; y como los dichos toltecas en todo le creían y obedecían no eran menos aficionados a los cosas divinas que su sacerdote, y muy temerosos de sus dios” (Sahagún Bernardino de. Historia General de las Cosas de Nueva España, pp. 184-189, 1956).
Nesta visão sobrenatural de Tollan de Quetzalcóatl, os mexicas atribuíram a seus ancestrais toltecas e ao deus a criação do legado cultural a qual originou a vida civilizada na Mesoamérica: a invenção da agricultura, a astronomia, a medicina, a arte e demais ofícios. Assim, nas cosmogonias náhuatl e mixteca, Quetzalcóatl é o enviado divino que leva ao mundo terrestre os bens comuns da civilização.

2.4.1 O destino de Topiltzin Quetzalcóatl


Esta visão mítica de Quetzalcóatl como deus, sacerdote e herói cultural de Tula mesclaram-se e se confundiu com a imagem de um personagem chamado Ce Ácatl Topiltzin Quetzalcóatl que teria levado o mesmo nome que o deus e sacerdote, com qualidades guerreiras. Teria governado Tula dando ao centro urbano um período de prosperidade e finalmente abandonado seu reino, fugindo com uma parte de seus fiéis em direção ao oriente (López Austin, 1973).
Esta identidade produziu uma corrente de interpretação histórica que vê no legendário rei de Tula um ser humano que a teria efetivamente governado em um determinado período. No entanto, os dados que compõem sua biografia trazem uma imagem mais mítica deste rei. Os textos destacam Tula como um Estado florescente, a metrópole de onde se abundavam as riquezas materiais e confluíam os bens da civilização. Tula é vista como um reino prodigioso, em que o poder político estava unido ao religioso personificado em Ce Ácatl Topiltzin Quetzalcóatl, que edificou os templos suntuosos, produzido riquezas materiais e imposto práticas sacerdotais exemplares. Enfim, Tula era um reino cujos moradores ignoravam a fome e desfrutavam de um governo poderoso, próspero e civilizado.


No entanto, repentinamente, este reino mítico sofreu uma turbulência interna que os textos descrevem como uma hecatombe apocalíptica. Ce Ácatl Topiltzin Quetzalcóatl, o sacerdote exemplar, infringiu o código de conduta estabelecido por ele mesmo, abandonou seus deveres, rompeu as normas de abstinência e castidade, caindo na embriaguez e prazeres carnais. Esta crise está relacionada à presença perturbadora de Tezcatlipoca, uma divindade que desde o tempo da criação era o antagonista de Quetzalcóatl. Tezcatlipoca intervém diretamente na decadência de Quetzalcóatl e provoca o clima de caos do reino de Tula, levando-a a ruína. Segundo os textos e principalmente nas palavras de Sahagún (1956), estas catástrofes já eram esperadas, o que causava grande pavor nos habitantes de Tula. Assim, Tezcatlipoca aplicou suas artes maléficas para conduzir os toltecas à morte distribuindo pestes, secas, geadas, fome, guerras e mortandades coletivas. Agoniado pela sua própria ruína e pelas desgraças que aconteciam em seu reino,

Topiltzin Quetzalcóatl decidiu abandonar Tula (Figura 3. A fuga de Quetzalcóatl desde Tula. Em Florescano 1995: 268).
Despojado de seus bens, Quetzalcóatl deixa Tula e os textos descrevem esta passagem como a partida de um herói que por onde passa deixa sua marca, de modo que a viagem assume a forma de uma geografia e memória sagradas da partida deste nobre herói (Florescano, 1995). Para Michel Graulich (1988) esta viagem representa uma metáfora de sua incursão pelo inframundo, uma passagem da morte para a regeneração, de modo semelhante à viagem dos Gêmeos Divinos Hun Hunahpú e Xbalaqué do Popol Vuh no inframundo, conhecido na área maia como Xibalbá.
Esta passagem é semelhante ao destino de Topiltzin Quetzalcóatl que, quando chega à costa oriental, desaparece ao se transformar em fogo. Assim como assinala o Códice de Dresde, a Estrela Vespertina ou Vênus (como metáfora de Topiltzin) desaparece em meio aos raios de sol. Assim, Ce Ácatl Topiltzin Quetzalcóatl incendeia-se ao se imolar e desaparece no inframundo, renascendo depois no oriente como a Estrela Matutina ou Senhor de Alba.

3. A multiplicação de Quetzalcóatl

A partir da saída de Tula e de seu desaparecimento posterior em alguma parte da costa do Golfo do México, o personagem Ce Ácatl Topiltzin Quetzalcóatl reproduziu-se em diversas partes da Mesoamérica.
Desde Tula, passando pela bacia do México, pela região de Puebla, Oaxaca, Tabasco, Chiapas e Iucatã, até em regiões da América Central, como Guatemala, El Salvador e Nicarágua, inúmeros testemunhos registram a penetração de grupos de ascendência tolteca, junto com a chegada de um personagem que reproduz os traços do legendário rei, supremo sacerdote e herói cultural de Tula.
Diehl (1981) acredita que Tula é o primeiro Estado mesoamericano construído por uma mescla de invasores nortenhos e populações sedentárias do Altiplano Central, provavelmente de ascendência teotihuacana. Para Davies (1980), quando o Estado tolteca dissolve-se, esse fenômeno provoca uma diáspora de seus habitantes para o sul, abrindo suas portas para novas invasões do norte em que seus herdeiros propagaram, em diversas regiões de sua peregrinação, uma tradição política, religiosa e cultural de cunho híbrido que apresentaram como a raiz mais antiga e original dos povos mesoamericanos.
Assim, entre os mitos difundidos pelos grupos que migraram para o sul, os que tiveram maior impacto nestas regiões teriam sido o do deus, rei e herói cultural Quetzalcóatl e sua “magnífica” Tollán. Por exemplo, a pirâmide que dominava a cidade de Cholula, a maior e mais alta construída na Mesoamérica teria sido edificada em honra a um “capitão” responsável pela habitação do centro urbano. O seu nome era Quetzalcóatl e após sua morte esta pirâmide foi construída em sua memória.
A maioria dos estudos avalia que a presença de Quetzalcóatl e da mitologia tolteca é ainda mais acentuada no sul do México (Scholes e Roys, 1968; Thompson, 1975; Peniche Rivero, 1993). Estes autores estão de acordo que os putunes, um grupo maia chontal assentado nas terras de Tabasco e Campeche foram os primeiros maias a entrar em contato com outros povos do centro do México de língua náhuatl. Desta mescla étnica e cultural teriam surgido os itzás, um ramo putun de comerciantes e guerreiros que dominou o tráfico costeiro da península do Iucatã, penetrando seu interior e chegando em Chichén Itzá nos primeiros anos do século IX.
Parece ser que, miticamente falando, os itzás, portadores de uma cultura composta de tradições maias e náhuatls, mesclaram-se com a população original do norte da península do Iucatã e juntos criaram uma cidade com traços sociais, políticos e culturais híbridos, fazendo de Chichén Itzá um centro cosmopolita e irradiador de novas mensagens simbólicas.
Florescano (1995) vê na somatização do elemento itzá uma condição que levou Chichén Itzá a se converter em uma metrópole multiétnica e um centro de controle e poder que ultrapassou suas fronteiras políticas. Assim, a cidade de Chichén Itzá foi uma cidade de população híbrida, mesclada pelos itzás que vieram de fora, mas já maianizados e de habitantes originais de tradição iucateca. No entanto, essa discussão segue na literatura. Os arqueólogos não encontraram evidência dessa relação na cultura material e pensam que esse discurso é mítico e aparece somente nas fontes escritas.
Muitos autores na atualidade ainda acreditam na idéia de que Tula teria conquistado Chichén Itzá e iniciado o processo tão discutido de mexicanização entre a cultura maia do Iucatã. No entanto, os supostos vestígios materiais de origem “tolteca” em Chichén Itzá são superficiais e não apresentam contexto arqueológico, o que parece ser que o contato entre estas duas cidades, separadas por mais de mil quilômetros de distância, foi muito mais indireto que direto.
Os testes radiocarbônicos e comparações estilísticas de arquitetura mostram que Chichén Itzá é contemporânea aos sítios Puuc e que sua construção total já tivesse sido empreendida até o ano de 950 d.C. o que mostra que ela é um centro urbano mais antigo que Tula, impossibilitando, deste modo, a tese da invasão tolteca em Chichén Itzá (Andrews IV e Andrews V, 1980; Robles Castellanos, 1990, Cobos, 2001, 2003; Navarro, 2001, 2007).
Parece ser que a tradição tolteca recolhida pelos mexicas e propagada em diversos textos que foram organizados após a Conquista. O resultado deste processo é a criação de uma lenda e de um mito muito complexo que tem gerado as mais diversas interpretações.


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Alexandre Guida Navarro é Historiador. Mestre em Arqueologia pela USP. Doutor em Antropologia/Arqueologia pela UNAM, México. Atualmente realiza Pós-Doutorado no Núcleo de Estudos Estratégicos (Unicamp). Email: altardesacrificios@yahoo.com.br