Sillustani Antigo cemitério pré-inca |
Texto de Dalton Delfini Maziero
(extraído de seu diário de expedição, 1997) |
Sillustani
é um dos maiores e mais conservados complexos de sepulturas pré-colombianas
da América do Sul. Situado numa pequena península da lagoa
Umayo, revela como os antigos povos indígenas tinham um cuidado
todo especial quando o assunto era a vida pós-morte. |
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Na noite em que cheguei a Atuncolla, fui obrigado a suportar
uma imprevisível serenata. Rolava dentro do saco de dormir, embalado
pela cantoria de dois bêbados, que resolveram tocar trompete e bater
bumbo, em frente, à igreja até às 3 horas da madrugada!
A gritaria era acompanhada por um cachorro que não parava de latir.
No fim, acho que consegui “apagar” por um par de horas. Durante a noite, fez muito frio. De certa forma, fiquei feliz por ter arrumado aquele chiqueirinho em que estava. Deitado sobre |
meu isolante térmico,
para não entrar em contato com a poeira do chão, fiquei
observando um verdadeiro mar de estrelas pela janela! Nunca havia visto
um céu tão espetacular quanto aquele. Eram tantos pontos
de luz, que eles quase se uniam numa única e enorme massa branca.
Logo me levantei, preparei um chá com pão e tratei de “pular
fora” daquele quarto deprimente. |
Numa manhã fria e nebulosa
de 1242, tudo é dor e sofrimento na capital do orgulhoso povo colla.
Em Atuncolla, o sacerdote inicia os preparativos para o enterro. Ele já
havia previsto, ao consultar as folhas de coca, que o momento da morte aproximava-se
para o seu senhor. As folhas são poderosas, elas não mentem!
Não tinha como evitar a morte... Sabia disso, mas estava ciente de
que, a partir daquele instante, seu papel era fundamental para que o morto
seguisse o caminho do além. Conhecia muito bem as obrigações
e procedimentos a serem tomados nos próximos oito dias. Era a tradição
e todos deveriam segui-la, sem restrições. O ritual tinha
que ser levado adiante. Esta era sua função. Após levar o corpo e deitá-lo em local sagrado, seguem-se cânticos religiosos e evocações aos deuses. Ervas aromáticas são preparadas e queimadas por conhecedores de uma medicina milenar. Todos os ingredientes são conferidos, minuciosamente, por homens que vivem para esse único e especial momento: o da morte. |
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Brandindo a lâmina
de obsidiana (espécie de rocha vulcânica) com a autoridade
que lhe é conferida, o sacerdote abre o corpo de seu senhor, extraindo
as vísceras e intestino do cadáver. Recolhe o sangue e rompe
sua caixa craniana em busca do cérebro, que também será
retirado e tratado com ervas especiais. Um trabalho meticuloso e paciente.
O interior do corpo, já vazio, é então tratado com
bálsamos, ervas aromáticas, cal e substâncias que
guardarão, ao longo do tempo, seus segredos. Ele é posto
em posição fetal, abraçando os próprios joelhos,
para lembrá-lo do início da vida, antes do seu nascimento.
Representando que aquilo não era o fim, mas apenas, um novo começo.
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Além dos parentes, os
servos do senhor também se preparavam para o grande momento. Raspavam
suas cabeças e cobriam seus corpos com cinzas. Ao final do sétimo
dia, após danças e cânticos intermináveis, todos
se encontravam em completo estado de êxtase. Finalmente, havia chegado
o tão esperado momento. Era noite em Atuncolla. Gelada e estrelada, como sempre foi nessa região. A lua, enorme e prateada, havia comparecido como se já soubesse o que se seguiria. |
Tochas iluminavam o caminho,
carregadas por homens que entoavam um lamento fúnebre. |
Um a um, os servos são
imolados. Familiares e algumas pessoas se oferecem, espontaneamente, para
acompanhar seu senhor. O sacerdote, com uma firmeza que só profissionais
experientes são capazes de demonstrar, fazia a lâmina de sua
faca perfurar corpos em busca do coração ainda pulsante, na
certeza de estar prestando o derradeiro benefício ao seu senhor.
Outros são inseridos vivos na tumba e lá passam seus últimos
momentos em meditação, controlando seu horror, até
o momento em |
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que também estariam
ao lado de seu líder. Após os sacrifícios, o sacerdote
entoando rezas, toma em suas mãos o sangue reservado e, com ele,
banha as paredes do túmulo. |
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Nesta época, Sillustani
já era uma área sagrada, contendo tumbas de origem pucara
e tiwanaku, cada qual construída conforme suas técnicas
e influências. Com os collas não foi diferente. É por
este motivo que encontramos, em Sillustani, sepulturas de vários
tamanhos e formatos, de acordo com o povo que as construiu e o status de
cada morto, pois, ao contrário do que muitos pensam, não foram
enterrados somente grandes senhores, mas também pessoas de menor
prestígio. Isso reflete uma sociedade dividida em classes. O “Período dos Incas” foi curto (1450 a 1532) e marcado por vários anos de lutas. Tentaram, de todas as formas, conquistar a região. O domínio só veio, em definitivo, com sucessivas invasões de Pachacutec, Yupanqui, entre outros imperadores, que souberam, através de alianças políticas, impor suas regras. As sepulturas, finamente polidas, provêm deste período. Todo este processo foi interrompido com a invasão espanhola. No Período Colonial, de 1533 a 1824, tanto Sillustani quanto a capital, Atuncolla, passam a |
pertencer ao governo espanhol.
Sua chegada causa uma revolução regional. Povos são
deslocados para trabalharem nas minas e uma verdadeira “caça
ao tesouro” tem início, resultando no saque de tumbas, templos
e pirâmides. Nesta fase, vários sítios arqueológicos
foram devastados e cidades, abandonadas. Foi o destino de Atuncolla, que
junto a Sillustani, entrou em franco declínio. ******************** Andando solitariamente em meio às tumbas, resolvi observá-las
do ponto de vista das "múmias". Adoro mudar de perspectiva,
de vez em quando. Escolhi a famosa chullpa do Lagarto (com 12
metros de altura) e rastejei de barriga pela minúscula porta. Emparedado
vivo, fiquei sentado em posição fetal até que minha
vista se acostumasse à escuridão. "Como careciam de gruas, rodas e engenhos para subi-las (as
rochas) faziam um terraplano escarpado à obra, e por ele as subiam
rodando; e quando ia crescendo o edifício, tanto assim iam levantando
o terraplano." |
“Dalton Delfini Maziero é historiador, maquetista, expedicionário e idealizador do site Arqueologiamericana. Dedica-se atualmente, à construção de maquetes arqueológicas e instalação de espaços culturais” |