Por
este motivo, não é exagero afirmar que a cultura aymara tem
na língua, o seu mais precioso bem. Na verdade, é ela que
determina quem faz parte ou não desse grupo social. Embora tivessem
herdado um rico legado, não conseguiram em sua curta existência
de domínio regional (1200-1400 dC) fixar padrões sociais sólidos.
Viviam ainda uma fase de assentamento, quando da invasão incaica,
de língua quêchua.
Os aymaras sobreviveram portanto,
a duas grandes invasões: a dos incas e espanhóis. Mas da forma
como os invasores chegaram, se foram. E os aymaras ficaram, isolados no
Altiplano, em meio ao caos social. Aceitaram a contra gosto as novas imposições
político-religiosas, mantendo suas crenças de forma quase
clandestina, numa resistência silenciosa.
Muito das crenças aymaras
são provenientes de tempos mais remotos. Quando de sua chegada, em
1200 dC., diversos povos já haviam estabelecido suas huacas
na região, ou seja, seus locais e objetos sagrados. Seu conceito
é complexo e abrangente. Ela pode ser uma rocha, árvore de
formato estranho, uma montanha, ilha, caverna ou o próprio Titicaca.
Uma huaca sempre guarda ligação com alguma entidade,
protetora ou não, de uma família ou comunidade.
Esse conceito ainda hoje é
utilizado. Durante os três meses em que contornei a pé o Titicaca,
pude presenciar vários exemplos de locais sagrados. Muitas vezes,
nem os próprios camponeses sabiam me explicar o motivo dessa adoração.
O vulcão Kapía (4809 m), próximo a Yunguyo, é
um deles. A cidade (50 mil hab) é tipicamente católica, mas
discute ainda os perigos de quem se aventura nos vales próximos ao
vulcão. Muitos acreditam que aquela seja uma das regiões habitadas
pelo Nakaq (ou Kjarisiri), um anão degolador que vive
soturnamente atrás de vítimas, para delas extrair sua gordura,
utilizada na confecção de velas, lubrificantes e operações
hospitalares. Esta lenda encontra ecos em tradições da conquista
espanhola e revela como os aymaras vivem mergulhados num mundo mítico
que os cerca.
O vulcão Kapía
é uma huaca, e como tal, visitada pelos camponeses. Ao escalar
parte da montanha, observei pequenos grupos que caminhavam ocultos pela
madrugada, em meio ao frio e flocos de neve que caíam. Dirigiam-se
a uma encosta onde depositariam suas oferendas (folhas de coca, velas, grãos
e água ardente) em pequenos casulos de pedra, na esperança
de dias melhores.
Na margem oposta do Titicaca,
na Península de Huata, o visitante disposto a caminhar poderá
ver monólitos: estátuas de pedra lapidadas com motivos variados.
Alguns deles cercados por pequenos muros de pedra, tornaram-se locais depositários
de oferendas. Ao mostrar minha intenção em conhecê-los,
um velho senhor orientou-me, dizendo ser necessário pedir permissão
(não a ele ou às autoridades, mas às entidades locais)
e levar em oferenda algumas folhas de coca. Cumpri o ritual conforme a tradição
manda. Infelizmente, muitas dessas antigas estátuas estão
sendo roubadas por huaqueros (traficantes arqueológicos),
que as vendem a estrangeiros.
Em todo o Titicaca, com os primeiros
raios solares, podemos presenciar comunidades camponesas que antes de iniciarem
as tarefas diárias, reúnem-se em círculo para mascar
coca e conversar. Essas ações comunitárias são
frequentes entre eles. Ainda podemos encontrar, embora de forma cada vez
mais rara, a tradição da Zafa-Casa, onde a comunidade
se reúne durante alguns dias em festa, enquanto ergue a casa do morador
que irá se unir em matrimônio. Os laços comunitários
quase nunca envolvem dinheiro, mas a garantia de auxílio e a segurança
de poder sempre contar com alguém. A educação comunitária
ensina aos jovens que para sobreviver no mundo hostil do Altiplano, precisa
existir união. Não apenas a união proveniente da Zafa-Casa,
mas a deles mesmos, enquanto indivíduos, com o mundo mítico
do Titicaca. Os jovens compreendem que fazem parte de um todo, uno e indivisível,
marcado pela presença de forças antagônicas.
Desta forma, o conceito de sagrado
entre os aymaras não se restringe a um culto específico ou
deus em particular. Podemos dizer que se aproximam muito de um culto animista
- reforçado por suas tradições comunitárias
- dedicado às forças da natureza e as entidades diversas que
vagam pelo Altiplano, interferindo de alguma forma em suas vidas diárias,
de acordo com as oferendas que lhes são prestadas.
Pachamama, a "Mãe
Terra", é provavelmente o maior símbolo desse culto.
A palavra "Mãe" significa apenas o termo mais próximo
que foi encontrado por nós para tentar compreendê-la. Não
existe uma terminologia moderna que possa, ou sequer consiga, expressar
seu vasto significado. Ela é o próprio tempo em movimento,
o espaço indivisível e onipresente. É o solo divinizado,
possuidor da vida. Algo por demais global para ser traduzido em palavras.
Tanto, que não existe um dia comemorativo para Pachamama.
Ela tornou-se inseparável do cotidiano. Mas se ela é tão
importante, não deveriam existir imagens para sua adoração?
Isso não ocorre. O aymara não precisa recorrer a esse tipo
de artifício para falar com suas entidades, pois elas estão
ao seu lado, como estão as árvores, pedras, rios, animais
e tudo o mais, integrados e expostos às intempéries da vida.
Então, como podemos crer
na imagem de um aymara carregando a cruz durante uma procissão católica?
Presenciei essa cena em Copacabana, a "capital" católica
do Altiplano. Devemos encarar isso como uma corrupção de suas
antigas tradições? O povo aymara convive num mundo cheio de
dualidades e sincretismo. Conseguem de forma absolutamente natural, participar
de uma missa e no momento seguinte, prestar culto a sua entidade familiar
representada por uma montanha. Os padres de Copacabana aprenderam a aceitar
a postura nativa. A repressão a tais tradições milenares
dificilmente obterá resultados.
Não longe dali surge
a Ilha do Sol, imponente e misteriosa, guardiã de uma das mais antigas
rotas sagradas da América. No período pré-incaico,
diversos grupos peregrinavam em busca deste local, controlado por diversas
nações. A última a administrá-la foram os incas,
que iniciaram até mesmo a construção de um gigantesco
muro para isolar o local, tamanha sua importância. Manipular o sagrado
significava exercer um vasto poder perante as demais nações.
Hoje restam poucos vestígios desse passado na ilha. A maioria dos
templos foram demolidos pelos espanhóis, que não compreendiam
a cosmovisão nativa. A construção de uma catedral católica
em Copacabana não é portanto, casual. Representa o controle
do sagrado, agora em mãos dos de língua espanhola.
O casamento é o símbolo
máximo desse sincretismo no Altiplano. Tive a oportunidade de assistir
um deles. No altar, o casal portava-se como qualquer outro em tal situação.
Sorridentes, aguardavam as palavras finais do padre que celebrava a missa.
Seu discurso reforçava a idéia de uma única fé
e dos deveres que teriam como casal para com Deus. Os amigos e parentes
aguardavam em silêncio, a espera talvez de lançarem-se às
comemorações, regadas a cerveja, dança e música.
Contudo, existia um estranho vazio em seus olhares enquanto o padre explicava
seu conceito de céu e Deus. Seria uma resistência silenciosa?
De qualquer forma, muitas comunidades após celebrarem o casamento
na cidade, partem para seus vilarejos, onde repetem a cerimônia, dessa
vez sob a benção de um Yatiri (líder social
e religioso aymara) e segundo seus próprios costumes. Sim, entre
a benção do Deus católico e a das antigas tradições
aymaras, eles ficavam com as duas.
Recentemente, os aymaras obtiveram
um avanço significativo na educação de seu povo, ao
elevarem o dialeto aymara a condição de língua nacional.
Reconhecidos, podem agora praticá-la com maior liberdade nas escolas
comunitárias, reforçando seus laços com as antigas
tradições. As novas gerações vivem com um pé
no mundo mítico do Titicaca e outro na dura realidade camponesa.
Dividem-se entre as maravilhas tecnológicas mostradas pela TV e a
falta de estrutura de suas cabanas. Contudo, ao olharem diariamente para
a paisagem, continuam a sentir a força da terra, o vento gelado e
cortante em seus rostos e o sol que queima a pele a 4000 metros de altitude.
E quando precisarem recorrer ao auxílio para sua sobrevivência,
certamente olharão para as montanhas, para suas huacas e para
os laços de sua própria coletividade. |